Eliane Brum
Uma amiga me
contava na semana passada que iniciou uma nova aventura psicanalítica. Depois
de anos, ela encerou uma análise que lhe permitiu desatar muitos nós de sua
vida e iniciou uma nova jornada no divã de outro psicanalista. Não foi uma
troca de profissionais. Apenas o reconhecimento de que uma boa história havia
se encerrado e o desejo de começar outra. O novo psicanalista perguntou a ela:
“O que você espera desta análise? ”. Minha amiga respondeu: “Eu quero me
desconhecer”.
Achei uma
excelente resposta. Ou uma ótima pergunta sobre si mesma. Na mesma semana,
conversando com outro amigo, de uma área bem diferente, ele me contava que não
consegue mais se sentir estimulado pelo que durante as primeiras décadas da sua
vida profissional lhe deu grande prazer e reconhecimento. Está mais interessado
nos meandros de um novo esporte que começou a praticar do que nos temas que
sempre o interessaram. Só que toda a sua vida adulta e sua estabilidade
financeira foram construídas sobre aquilo que hoje não lhe dá mais tesão. Ou,
seria mais exato dizer, não lhe dá mais tesão fazer do jeito que fazia antes e
que deu certo no passado, mas que hoje não faz mais sentido para ele.
A mesma
questão tem aparecido em conversas com outros amigos. Por alguma razão – e não
exatamente a faixa etária, porque a primeira amiga tem 30 e poucos e o segundo
mais de 50 –, estou cercada de pessoas que vivem um momento de vazio. Eu
incluída. Quem me acompanha sabe que em março deixei meu emprego na revista
Época, mantendo apenas esta coluna, e comecei uma vida sem carteira assinada
nem estabilidade e com dinheiro apenas para o básico. Naquele momento, quando
escrevi sobre a minha escolha num texto chamado “Escrivaninha
Xerife”, eu dizia que meu desejo era me reinventar.
Hoje, passados quase cinco meses dessa mudança, descubro que, para me
reinventar é preciso antes me desconhecer.
Foi uma
surpresa para mim – como, por outros caminhos, está sendo para meus amigos tão
diferentes do início deste texto. Hoje, não basta saber quem eu sou. É preciso
também saber quem eu não sou. Para, então, saber quem eu posso ser. Vou tentar
explicar melhor. Para nos estabelecermos na vida adulta precisamos construir um
personagem. Não com a total liberdade com que muitos sonham e alguns se iludem
que têm, mas com algum grau de livre arbítrio. Embora variem as nuances do que
as pessoas pensam sobre cada um de nós, há algo que é geral, que emana desse
personagem que criamos. E, aqui, quando me refiro à personagem, não há nenhuma
relação com falsidade ou simulação. É tão verdadeiro quanto qualquer coisa pode
ser verdadeira.
Na medida em
que esse personagem se torna convincente, no sentido de ser bem-sucedido na sua
relação com as várias esferas sociais, ele nos dá possibilidades e também nos
tira possibilidades. Ele nos dá estabilidade, segurança, certezas,
reconhecimento. Mas ele contém em si uma armadilha. Do tipo: “Bom, então é isso
o que eu sou e esta é a minha vida, daqui em diante é só navegar”. Este tipo de
conclusão pode se tornar uma prisão se você achar que esse personagem é tudo o
que você é. Ou que tudo que havia para ser decidido na sua vida já está dado.
Neste caso, a natureza fluida que nos habita vira cimento. E a busca, que é a
matéria que move nossa existência, termina.
O que
descubro – e que tem se mostrado um caminho bem mais difícil do que eu
imaginava que seria – é a necessidade de se manter, pelo menos em parte,
estrangeiro à própria vida. Manter algo de si no vazio, uma parte de nós capaz
de olhar para o todo como terra desconhecida, aberta para o espanto de nós em
nós. Ou seja: é preciso ser capaz de olhar para nós mesmos com estranhamento
para que possamos enxergar possibilidades que um olhar viciado tornaria
invisíveis. Este é o processo de se desconhecer como uma forma mais profunda de
se conhecer. Para novamente se desconhecer e assim por diante. Exige muita
coragem. Porque dá um medo danado.
Ao mudar
minha vida para me reapropriar do meu tempo, um dos meus planos era me dar ao
luxo de ficar olhando para o teto, por exemplo, sem fazer nada que pudesse ser
considerado útil ou produtivo. Queria ser um pouco perdulária com o meu tempo
num sentido novo. Em vez disso, tratei de ocupar todas as minhas horas com
tarefas minhas, mas tarefas. Em vez de acordar às 6h30, como fazia quando tinha
emprego e salário, passei a acordar às 4h30. Eu tinha tanto medo do vazio que
resolvi preenchê-lo todo, a ponto de quase não dormir. Descobri que precisava
abrir mão da covardia de não querer ter tempo para tudo o que não sei o que é.
Demorei meses, me angustiei bastante, mas consegui me lambuzar de uma liberdade
nova.
Descobri também que deveria fechar algumas portas – e não mais abri-las. Passei boa parte dos últimos anos abrindo portas e experimentando o que havia do outro lado. Isso me levou a experiências ricas e me ajudou a construir o momento em que pude começar a fechar portas. Descobri então que tão importante quanto abrir é ter a coragem de fechar. E fechar é muito mais difícil. Quando quase tudo está em aberto, é preciso ser muito seletivo com relação às portas. O que eu quero, o que eu não quero. O que é importante, o que não é importante. O que é bom para mim, o que não é. As pessoas com quem vale a pena compartilhar projetos, as que não quero manter perto de mim. O que me leva a algum lugar novo ou a alguma forma nova de ver o mesmo lugar, o que me traz de volta ao mesmo ponto.
Descobri também que deveria fechar algumas portas – e não mais abri-las. Passei boa parte dos últimos anos abrindo portas e experimentando o que havia do outro lado. Isso me levou a experiências ricas e me ajudou a construir o momento em que pude começar a fechar portas. Descobri então que tão importante quanto abrir é ter a coragem de fechar. E fechar é muito mais difícil. Quando quase tudo está em aberto, é preciso ser muito seletivo com relação às portas. O que eu quero, o que eu não quero. O que é importante, o que não é importante. O que é bom para mim, o que não é. As pessoas com quem vale a pena compartilhar projetos, as que não quero manter perto de mim. O que me leva a algum lugar novo ou a alguma forma nova de ver o mesmo lugar, o que me traz de volta ao mesmo ponto.
Recebi
convites de todos os tipos, alguns bem inusitados. Para ganhar muito mais
dinheiro do que jamais ganhei, para não ganhar nada, para fazer o que nunca
fiz, para fazer o que sempre fiz. Tive de parar e pensar que naquele momento eu
tinha de recusar tudo porque ainda que algumas propostas fossem quase
irrecusáveis, eu precisava ficar no vazio e me desconhecer para ser capaz de
fazer escolhas mais verdadeiras. Eu precisava me desintoxicar de mim para poder
ser mais eu mesma.
Descobri
ainda que é preciso resistir também às certezas que as pessoas têm sobre nós.
Há gente de todo o tipo. E alguns ficam muito desorientados se a gente muda, se
qualquer coisa ao redor deles muda. Querem desesperadamente que voltemos a ser
um clichê seguro. Quando você abre mão do seu clichê, o clichê que mora em
alguns começa a coçar. Desinteressei-me de alguns amigos que queriam porque
queriam que eu dissesse que sentia falta da vida que tinha, muito parecida com
a deles. Percebi que torciam menos secretamente do que gostariam para que meu
projeto desse errado, para então continuar vivendo em paz com certezas sobre as
quais, ao que parece, têm muitas dúvidas. Do mesmo modo que guardei apenas um
olhar de Mona Lisa para aqueles que adoram teorias conspiratórias e queriam
saber “de verdade” o que tinha acontecido, porque lidam melhor com fofocas
velhas do que com fatos novos. Fechar portas é também virar as costas para quem
exige que sejamos sempre os mesmos para sua própria comodidade.
Mas, mais
difícil do que resistir à necessidade de certezas de quem está ao nosso redor,
é resistir à nossa própria necessidade de certezas – abrir mão de nossos
clichês pessoais. Me descobri agarrada a todos os meus como um daqueles
náufragos de histórias em quadrinhos boiando sobre destroços em mar aberto. Nos
primeiros tempos, ficava muito desorientada com uma pergunta recorrente que me
faziam: “Mas você deixou de ser repórter?”. Não! Eu não deixei de ser repórter,
gosto cada vez mais de ser repórter. Mas ser repórter não é tudo o que eu sou.
Boa parte das pessoas entende muito bem quando você não dá certo no que faz e
tenta ser ou fazer outras coisas. Mas acha inadmissível que
você dê certo e também tente ser ou fazer outras coisas. Não negando a sua
história, pelo contrário. Mas a usando para criar outros eus possíveis.
Descobrir as
outras possibilidades do que sou é, neste momento, minha maior tarefa. Para
chegar a isso preciso me perder de mim, me desconhecer. Neste sentido, hoje
minha reportagem mais difícil é a busca destes outros personagens que moram no
universo sem limites definidos do que sou. E que são tão verdadeiros quanto a
repórter que sou. E que me tornarão melhor repórter do que pude ser antes de
construir a chance de viver a verdade dessa busca.
Um momento de
vida que é apenas um momento que também deve ser superado para que outros
possam vir, já que não me interessa sair de um escaninho para cair em outro.
Nada impede que amanhã eu descubra que ter um emprego e um formato de vida mais
estável é o melhor para mim – ou que não, eu continue achando mais divertido
viver com mais autonomia e menos dinheiro. Ou que invente um jeito novo que
serve para mim, mas pode não servir para mais ninguém. O contrato que assinei
comigo mesma é o de seguir coerente com a necessidade de me buscar.
Quando minha
amiga repetiu para mim o que disse ao analista – “Estou aqui porque quero me
desconhecer” –, ela me ajudou a compreender melhor o meu momento. E eu pude
dizer a meu outro amigo que ele precisa ter a coragem de se manter sem saber
quem é por um tempo, para poder então descobrir o que quer fazer com seu
desejo. Conto esta experiência aqui porque acredito que outras pessoas possam estar
vivendo algo parecido, por caminhos e circunstâncias próprias – e acho
importante refletirmos juntos. Manter parte de nós no vazio gera muito
angústia, mas, se tivermos a coragem de aguentar um pouco, nos leva a lugares
desconhecidos e excitantes de nós mesmos. Não é nem que as perguntas mudem, mas
é o jeito de fazê-las que precisa ser novo para que possamos alcançar respostas
mais estimulantes. Tenho para mim que as grandes perguntas de todos nós são
sempre as mesmas, o que muda é como buscamos as respostas.
Acho que se
desconhecer é sacudir o cimento que há em nós, colocado por nossas mãos e
também pelas mãos ávidas dos outros. E isso vale para tudo, até para coisas
muito triviais. Como aquelas frases: “Fulano não come peixe” ou “Sicrano
detesta sair de casa”. Se o fulano acredita que porque não comia peixe aos dez
anos não vai comer aos 30, nunca vai saber o gosto de um tambaqui. Assim como
nenhuma pequena ou grande aventura acontecerá ao sicrano que não se arrisca
além da porta da rua porque está esmagado no sofá da sala pelo dogma que criou
para si e que os outros ajudaram a cimentar. Porque é só o começo. Destes
pequenos dogmas se passa para outras verdades absolutas que dizem respeito a
todas as áreas da vida. “Fulano é assim”, portanto fulano é imutável e,
portanto, fulano está morto, mas não sabe.
Meu conselho
é fugir de frases do gênero: “Eu sou um tipo de pessoa que...” ou “Deixa eu te
contar que tipo de pessoa eu sou...”. Suspeito que quem diz essas coisas não
sabe nem o caminho de casa. Acho que as buscas mais interessantes começam com
frases como: “Não sei mais quem eu sou” ou “Não tenho ideia de quem eu sou”.
Ótimo, podemos dizer que começamos a nos conhecer. Claro que só para nos
perdermos logo adiante. Afinal, para que mais serve a vida?
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