Estou tonto, Tonto de tanto dormir ou de tanto pensar, Ou de ambas as coisas. O que sei é que estou tonto E não sei bem se me devo levantar da cadeira Ou como me levantar dela. Fiquemos nisto: estou tonto.
Afinal Que vida fiz eu da vida? Nada. Tudo interstícios, Tudo aproximações, Tudo função do irregular e do absurdo, Tudo nada. É por isso que estou tonto ...
Agora Todas as manhãs me levanto Tonto ...
Sim, verdadeiramente tonto... Sem saber em mim e meu nome, Sem saber onde estou, Sem saber o que fui, Sem saber nada.
Mas se isto é assim, é assim. Deixo-me estar na cadeira, Estou tonto. Bem, estou tonto. Fico sentado E tonto, Sim, tonto, Tonto... Tonto.
Adoraria conseguir transpor em palavras o que sinto, porque sinceramente não consigo explicar quando preciso. Na verdade, parece que é difícil até mesmo me compreender. Mudei demais pra conseguir me entender com o raciocínio de antes. Quero muito e não consigo nem completar o que preciso, desejo demais quando não dependo apenas de mim pra realizar.
E este querer repentino? Um querer bem não sei de onde, uma saudade sorrateira durante seis dias da semana, um desejo entorpecente... Como não pude dizer tudo isso em poucas palavras quando ele pediu pra eu falar? Como consegui ficar calada se precisava falar. Pela primeira vez alguém se preocupa com o que sinto e tem interesse em saber o que tenho a dizer e... nada. Nem um esboço de palavra sequer, e as sensações transbordavam dentro de mim, me afogavam. Eu tentei comprimir aquele aperto e tudo que consegui foi dar as costas, inconscientemente tentando testá-lo, era a forma de deixar clara minha insatisfação e perceber, ele se importa. como isso é bom. Mas não resolve nada.
O que é isso que sinto? Consegui chegar ao extremo de não saber onde quero chegar tendo tudo bem traçado. Tinha que acontecer, eu precisava me sentir viva de novo. Só não sei o que é, mas sei o que provoca. Me completa, me divide. Estou inteira pela metade. É... Tenho a leve impressão de que começo a entender. Impressão apenas, às vezes acho que entendi e volto ao começo pra saber onde errei, o que deixei passar. Quero acertar. Perdi a segurança, a confiança, que falta faz ser como era, apenas em algumas coisas, claro.
Eu recriei meu mundo, me refiz da forma mais correta que encontrei, tentei esquecer, mas não é possível, então as cicatrizes vieram de presente. Com o tempo, consegui o que queria e até mais do que esperava. Recebi de braços abertos acreditando nunca ter sido tão feliz e de repente voltei à estaca zero. Medo. Nunca me passou tanto pela cabeça uma palavrinha tão pequena, em letras garrafais. É preciso ter calma. É preciso cuidado. Não sou mais a menina. Antes era fácil, caia, com lágrimas levantava com os arranhões nos joelhos, depois, ah, era apenas mais um arranhão, um cascão de ferida feio, sarou, pronta pra outra. Que saudade! Agora não há mais espaço pra arranhões, quer saber, acho que não tenho mais joelhos.
O que vou fazer se cair de novo. Não sei. É, eu sempre vou em frente, eu já lhe disse, mas a que custo. O que mais vou carregar agora?
O que há em mim é sobretudo cansaço — Não disto nem daquilo, Nem sequer de tudo ou de nada: Cansaço assim mesmo, ele mesmo, Cansaço.
A sutileza das sensações inúteis, As paixões violentas por coisa nenhuma, Os amores intensos por o suposto em alguém, Essas coisas todas — Essas e o que falta nelas eternamente —; Tudo isso faz um cansaço, Este cansaço, Cansaço.
Há sem dúvida quem ame o infinito, Há sem dúvida quem deseje o impossível, Há sem dúvida quem não queira nada — Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles: Porque eu amo infinitamente o finito, Porque eu desejo impossivelmente o possível, Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser, Ou até se não puder ser...
E o resultado? Para eles a vida vivida ou sonhada, Para eles o sonho sonhado ou vivido, Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto... Para mim só um grande, um profundo, E, ah com que felicidade infecundo, cansaço, Um supremíssimo cansaço, Íssimno, íssimo, íssimo, Cansaço...
Conhecia o gosto da palavra medo, conhecia o cheiro da palavra medo, o som da palavra não tendo primazia sobre ela. Tinha a vocação dos abismos — e não sabia.
Ainda não entendera ao certo se a possibilidade maior estava no primitivo, nas coisas primitivas, ou no requinte. Porque fundamental era o mistério, e mistério nos dois havia.
Ela estava na restinga, o capim chegava-lhe aos tornozelos como poderia atrevidamente tocar-lhe o alto das coxas, o mar vinha na salsugem até seu corpo numa espécie de andar como o coleante andar das serpentes. Nunca vira olhar mais sensual, mais direto, mais provocador e animal do que esse olhar úmido e duro a um só tempo, cheio de desejo dela, mas sem ternura alguma: sou teu inimigo, te matarei de prazer e não terei piedade. O olhar dourado do abismo, o olhar cor-de-mel-da-paixão-puramente-animal-sem-a-menor-ternura, urgente, na restinga.
Homem algum a tinha olhado assim antes, tão friamente, com essa frialdade de posse. De imediato, esse olhar criou um elo quase arquetípico entre os dois, uma cumplicidade.
Ninguém jamais a tinha olhado assim e assim penetrado esse ponto perdido de sua consciência de ser também, súbita e violentamente, um animal, com esse magma a rugir nas entranhas como um animal no cio.
Como teria ele entrado de seu inconsciente para a clareira de sua consciência? Depois de Gamiane?
Este olhar: a figuração de um sonho? Apanhada na armadilha, os pontos nevrálgicos da paixão em seu corpo — os pés em primeiro lugar, quase oriental que era, a nuca, o longo do dorso, a parte de fora das ancas, o interior das coxas, a vulva - foram tomados como uma fortaleza de assalto por este olhar. Toda uma sarça ardente, sentia-se também um animal.
Sua consciência se esvaía, estranha e febril, como uma rápida perda da memória. Nunca tivera sido tão fêmea como então, refletida nesse olhar.
Feras agora, os músculos de ambos estavam retesados, possessos. Sua sede? Um castelo de águas? Só abrasamento e fúria essa atração. Bode, planto em ti um jardim de crinas e de espantos.
O olhar mais sexy que tinha visto. O olhar dourado do abismo. E era de um bode.
domingo, maio 09, 2010
Amor, quantos caminhos até chegar a um beijo, que solidão errante até tua companhia! Seguem os trens sozinhos rodando com a chuva. Em taltal não amanhece ainda a primavera.
Mas tu e eu, amor meu, estamos juntos, juntos desde a roupa às raízes, juntos de outono, de água, de quadris, até ser só tu, só eu juntos.
Pensar que custou tantas pedras que leva o rio, a desembocadura da água de Boroa, pensar que separados por trens e nações
tu e eu tínhamos que simplesmente amar-nos com todos confundidos, com homens e mulheres, com a terra que implanta e educa cravos. (Pablo Neruda)