Estou aqui
sentada há dias
e enquanto ela e as outras e todo o resto te ocupam
continuo aqui
e ainda estou tua.
Enfim, o final do ano só não é tão indiferente por causa da Geovana, comprei coisas pra ela e esqueci de mim. Que engraçado! A gente perde um pouco a noção das coisas quando ama alguém. Laçinhos, roupinhas, sapatinhos... Esqueci de comprar minhas coisas.
Além de tudo, este ano resolvemos fazer a ceia aqui em casa e eu até inventei de ir pra cozinha, em que outro momento do ano isso acontece? Me empolguei mesmo e até que não ficou ruim, pelo menos o povo aqui gostou. Tivemos que chamar mais gente pra dar conta de comer tudo.
E o que dizer do meu cabelo vermelho e lilás? Simplesmente a-d-o-r-e-i. Esta minha vontade maluca de mudar é algo que ainda não entendo. Eu mudo tanto que é difícil pra mim mesma acompanhar. Por enquanto tá tudo certo, nada de que eu me arrependesse, mas essa constante indefinição me incomoda, o que vou fazer ano que vem? Tá tão perto e eu ainda nem faço ideia. Não tenho tantos planos pra afirmar com certeza, tenho pequenas ideias ultramutantes, cada dia é uma novidade. Às vezes não dou conta nem do que ainda tenho pra fazer, liberdade demais também é prejudicial, ainda tenho um relatório e um artigo pra entregar e não faço a mínima ideia do que escrever.
Só tenho certeza das coisas que não quero e essas são as que mais me perseguem pra ser repitidas. Como um ser humano normal consegue conviver com tanta confusão? Mas do que eu tava falando mesmo? Ah, do natal, perdi a linha de raciocínio, enfim, de tudo só posso dizer que estou muito bem, nada se compara ao ano passado e quando relembro fico arrepiada. Da água pro vinho mesmo.
Talvez vá pra Mosqueiro no reveillon, olha só a diferença, nem de praia eu gosto, mas tô curtindo tanta coisa diferente, quem sabe faça mais que ler no sofá, de frente pra praia. Seria bom, primeiro final de ano com a Geovana. E ano que vem vai ser melhor ainda porque ela já vai ter um aninho. Mas isso é outra história.
Hoje foi um dia daqueles, fui dormir às 4 e tive de levantar às seis por conta de mais um artigo que deveria ser entregue. Ainda tenho dificuldade em fazer análise como deve ser feita e como disse à professora, sempre trabalhei com prosa, porque embora adore ler poemas, o medo de fazer uma análise atingindo apenas a superfície é gigantesca. E o pior é que o poema escolhido é do Manoel de Barros, imagina, tomei chá de cadeira em frente ao computador até que as primeiras ideias começassem a se descotinar e ainda assim achei que poderia ter feito melhor.
Claro que só poderia ter ficado destruída hoje, já sabia que ficaria sonolenta na aula, mas ao contrário do que eu pensei até que aguentei bem, apesar de tudo a poesia ainda me hipnotiza. Mas o ponto alto do meu dia foi o final da aula. A professora distribuiu alguns poemas entre nós, mas antes de distribuí-los ela lia um a um. Eu praticamente recitava junto com ela, depois de quase 6 anos em sala de aula e de muita leitura os poemas saem automaticamente.
Nenhum veio direto à minha mão, todos se identificavam com os belissimos poemas selecionados e ela ia apontando as folhas principalmente pras meninas nas cadeiras da frente, poemas de amor sempre parecem ser mais femininos mesmo. Até que ela começou a ler um que eu não conhecia, ela leu apenas os primeiros versos e apontou a folha diretamente pra mim, talvez simples coincidência, ou talvez os olhos de um poeta decifrem as almas de meros mortais como eu, e quando vi aqueles belos olhos verdes com a folha à minha frente, fiquei sem reação, aqueles versos foram violentamente lançados sobre mim, apesar da voz meiga que os recitava.
Fiquei refletindo, por que pra mim? Será que foi o meu silêncio? Será minha reação? Não tinha um espelho pra ver minha expressão, mas imagino que tenha sido algo que gritasse embora eu estivesse estática, porque ela estava praticamente de costas e me olhou como se conversasse com os meus olhos, os lesse e entendesse como aquelas poucas palavras violaram meus ouvidos e me estremeceram. É um daqueles textos que expressam melhor o que eu sinto do que se fossem escritos por mim. Depois de tudo a calma finalmente se estabeleceu e é assim que pretendo continuar, mesmo assim, não posso simplesmente apagar tudo e esse poema reflete de maneira magistral as palavras que engulo e as sensações que agora me acalentam. Seria a declaração perfeita ao meu amante (?).
Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma...
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o olhar extático da aurora.
(Vinícius de Moraes)
Cada movimento delicado, cada batida, a própria música que fazia movimentar o corpo inconscientemente, tudo se completava apesar do calor e do barulho do trânsito lá fora. Até as pernas já meio esquecidas se moviam, levavam o quadril a se encaixar na medida exata, parecia que não tinham esquecido nada. Só um pouco duras pelo tempo paradas, o que era de se esperar.
Só agora tenho conseguido perceber nas coisas mais triviais um prazer espontâneo e mesmo as obrigações tem sido mais leves. A sala de aula já não é tão opressiva, sinto até falta dos meus alunos junto com os poemas que vem automaticamente, com as personagens dos contos e romances que passeiam nos espaços físicos e psicológicos da minha imaginação. Nem mesmo o resultado da prova me desestimulou. Não sei bem qual minha direção agora, mas seja qual for, sei que está bem definida porque nada na minha vida acontece por acaso e mais do que nunca essa certeza se fortalece. Tenho meus projetos, aos poucos eles se concretizam não exatamente como os planejo, mas sempre da melhor maneira.
Vou voltar pro francês, quem sabe pras aulas de canto — se tudo der certo —, tô até pensando em arriscar no inglês... Tantos planos, tantas coisas que havia abandonado, outras que nunca saíram das anotações da minha idéia e que agora intensamente se desvelam bem na minha frente, parece papo de final de ano, ano novo, vida nova, mas de fato é, não necessariamente só em 2010, porque tudo começou agora. Essa é a verdade, tudo parece ter começado agora, a vida que quase estacionou há 3 anos ressurge intensa, como nunca.
A vida de uma mulher é permeada de torturas constantes, parem pra pensar, o que não fazemos para nos sentir mais bonitas? Mesmo eu que não sou muito vaidosa entrei em algumas situações. Só alguns exemplos:
Mas, até aqui tudo bem porque essas são as mais cotidianas e talvez eu que seja preguiçosa e fracote mesmo, difícil de adaptar. A mais nova tortura a que me submeti já deu seus primeiros resultados, bem dolorosos eu diria, minha pobre barriga já sente os reflexos dos puxões e apertões e isso foi só a primeira sessão, o que devo esperar das próximas 9? A massagem redutora no começo é até bacana, me segurei pra não rir, mas depois de uma hora de fricções nos mesmos pontos, não tem como aguentar, dói muuuuuito. Mas fazer o quê, diz que é assim mesmo, causa bons resultados, espero que sim.
Minha pobre vida feminina! Os homens não passam por metade disso e tantas outras coisas que não vou nem comentar pra não achar que estamos fadadas ao sofrimento, até porque também tem suas vantagens, não posso reclamar, admito, sempre me senti privilegiada por ter nascido mulher, e como minha família vive ressaltando, se eu tivesse nascido homem, com certeza seria gay. Mas isso é outra história.
A respiração de novembro e de sua véspera
(outubro) arde-me não no cérebro
nem no ombro
mas — anel de fogo — nas ancas
e nas entranhas.
Em ti eu amo os amores todos.
Eu não podia aceitar isto
mas aceito agora. A vida
não cessa, é eterno continuar.
Por mais que se queira
o ávido sangue não será saciado.
A tarde é quem está bebendo este desejo
conivente com a violência
da parada da fera amada.
E numa noite de novembro é que fiquei pronta para a vida
ao ver o mar refletido no teu corpo
e ao meu rosto assomar todo o desastre.
(Olga Savary)
Por enquanto, é uma daquelas fases tranquilas, ansiedade pelo resultado da prova e final de ano é final de semestre também, logo, uma montanha de artigos e outros trabalhos. Então, vez por outra, no intervalo entre coisas sérias e besteirol ele desliza pelos pensamentos, mal percebo, é o perfume dele, tão próximo, como se estivesse ao meu lado. Opa, vou procurar alguma coisa séria pra fazer.
No geral, transcorrem tranquilos os meus dias, cheios de expectativas, de vez em quando um momento down, pra não perder o costume e ele, momentos bons. Sou um ser humano afinal, carregado de desejos (mais do que gostaria, diga-se de passagem), mas sob controle, finalmente. Aprendi muito, todos aqueles problemas e desencontros, ditos mal-ditos, foram pra eu perceber que preciso mais de mim, ser mais independente, embora achasse que já era o suficiente. É fácil se enganar, já dizia a sábia: “Eu que não sei quase nada do mar, descobri que não sei nada de mim”. Eu e meus reflexos e complexos.
Enfim, o meu sonho doce e lascivo me lembrou um lindo poema da maravilhosa Hilda Hist que publico aqui.
Que este amor não me cegue nem me siga.
E de mim mesma nunca se aperceba.
Que me exclua de estar sendo perseguida
E do tormento
De só por ele me saber estar sendo.
Que o olhar não se perca nas tulipas
Pois formas tão perfeitas de beleza
Vêm do fulgor das trevas.
E o meu Senhor habita o rutilante escuro
De um suposto de heras em alto muro.
Que este amor só me faça descontente
E farta de fadigas. E de fragilidades tantas
Eu me faça pequena. E diminuta e tenra
Como só soem ser aranhas e formigas.
Que este amor só me veja de partida.
A hora da partida
(Sophia de Mello Breyner Andresen)
A hora da partida soa quando
Escurece o jardim e o vento passa,
Estala o chão e as portas batem, quando
A noite cada nó em si deslaça.
A hora da partida soa quando
as árvores parecem inspiradas
Como se tudo nelas germinasse.
Soa quando no fundo dos espelhos
Me é estranha e longínqua a minha face
E de mim se desprende a minha vida.
Que necessidade é essa da vida tão repentina e a esta altura do campeonato? Quando as coisas começam a se consertar minha maior inimiga mostra suas armas, ela apenas adormecia incólume enquanto eu passava todos os transtornos do cotidiano monótono e intransigente. Ao acordar, traz à tona todas as sensações, os conflitos, as buscas desenfreadas me instigando a sair da inércia tão costumeira.
Que aflição é esta? Que medos são estes? Ela quer me convencer a sair do meu casulo novamente, a me arriscar pelos costados, desbravar a altitude ainda não atingida. Não posso. Pego-lhe pela mão, olho em seus olhos, explico-lhe o contrasenso de seu desvario, nem se importa, eu, razão, é que pareço louca. Depois de tudo que passamos, ela esqueceu a intensidade da minha agonia, me diz que a vida não vale a pena sem riscos, que estou muito melhor agora, que sou mais forte do que pareço ser. Engano teu, querida, parecer e ser não são a mesma coisa, eu é que sei as feridas que escondo e tu as conheces bem, tão bem quanto eu, aliás.
Mas ela sabe como me convencer, sua voz ecoa dos vales e atiça, me estremeçe, porque parte de minha própria ânsia do indefinível. Entre papéis e livros ela ecoa transtornando meus pensamentos, preciso me concentrar, tenho prazos, datas de entrega de trabalhos. Certa, ela grita, não se conforma, não compreende. Isso é passado, me fiz máscaras, mulher e conjectura, não posso mais. Vamos entrar em crise de novo? Podemos negociar, é mais sensato, já quase me conveceste, sabes disso, dessa vez nós vamos, mas com calma.
Juventude, o poema a que me refiro, é encantador desde a construção, a brincadeira com as palavras derivadas de mar passeando pelo auge, no início “a jusante a maré entrega tudo”, até o término, “a montante a maré apaga tudo”. Mais que isso, a fascinante continuidade na descontinuidade e o movimento ondulatório do poema, como diz Benedito Nunes, nos prende em suas delicadas variações. Percorrê-lo é ver a juventude esvair-se por entre ele, como a sensação que tive ao escrever aquelas linhas, claro que eu muito mais irrequieta e inconformada. Enfim, não vou me prolongar hoje, transcrevo aqui o belissimo fragmento de que falei até então.
...
Juventude —
a jusante a maré entrega tudo —
maravilha do vento soprando sobre a maravilha
de estar vivo e capaz de sentir
maravilhas no vento —
amar a ilha, amar o vento, amar o sopro, o rasto
maravilha de estar ensimesmado
(a maravilha: vivo!),
tragado pelo vento, recomposto
nos pósteros do tempo, assassinado
na pletora do vento
maravilha de ser capaz,
maravilha de estar a postos,
maravilha de em paz sentir
maravilhas no vento
e pascentar o vento,
encapelado vento —
mar à vista da ilha,
eternidade à vista
do tempo —
o tempo: sempre o sopro
etéreo sobre os pagos, sobre as régias do vento,
do montuoso vento —
e a terna idade amarga — juventude —
êxtase ao vivo, erguer-se o vento lívido
vento salgado, paz de sentinela
maravulhada à vista
de si mesma nas algas
do tumultuoso vento,
de seus restos na mágoa
do tumulário tempo,
de seu pranto nas águas do mar justo —
maravilha de estar assimilado
pelo vento repleto
e pelo mar completo — juventude
a montante a maré apaga tudo —
...
O pouco que sobrou
(Marcelo Camelo)
Eu cansei de ser assim
Não posso mais levar
Se tudo é tão ruim
Por onde eu devo ir?
A vida vai seguir
Ninguém vai reparar
Aqui neste lugar
Eu acho que acabou
Mas vou cantar
Pra não cair
Fingindo ser alguém
Que vive assim de bem
Eu não sei por onde foi
Só resta eu me entregar
Cansei de procurar
O pouco que sobrou
Eu tinha algum amor
Eu era bem melhor
Mas tudo deu um nó
E a vida se perdeu
Se existe Deus em agonia
Manda essa cavalaria
Que hoje a fé
Me abandonou