quarta-feira, julho 31, 2019

Olhos vermelhos



"Parei de pensar e comecei a sentir
Nada como um dia após dia
Uma noite, um mês
Os velhos olhos vermelhos voltaram
De vez"
(Arnaldo Jose Lima Santos / Fernando Ouro Preto)

segunda-feira, julho 29, 2019

Fim do sonho

Tá bem difícil aceitar a simples possibilidade de que eu vá morrer na beira depois de ter nadado tanto. Foram anos e anos abrindo mão de desejos, abandonando planos e pessoas pra focar em um único objetivo: o doutorado. Desde o início da graduação, não aceitava conceito que fosse menor que excelente, bons me deixavam decepcionada, regulares eram inexistentes e assim me mantive até o mestrado. Não sem percalços pra me manter, pra manter minha família. 
Muitas noites em claro, sem finais de semana e feriados, o resultado? A excelência nos estudos e uma leve mudança no nível econômico da família, cada vez mais exigente por mais. Me acostumei a não construir relacionamentos com vistas pra um futuro e a intenção de constituir família ou, ao menos, ter a filha tão desejada (pra qual até nome tinha dado desde a adolescência) se desfizeram até serem completamente rejeitadas (não sem muitas críticas). Se há uma pequena vantagem nos tempos que vivemos, apesar de algumas discussões, é a de ser bem mais aceitável a perspectiva de uma mulher focada em sua carreira em vez da vida doméstica. A família e outros intrometidos continuam a cobrar, obviamente, mas continuo com a minha política da boa vizinhança, evitando de todas as formas qualquer tipo de rusga e esse incômodo, apesar de frequente, é bem tolerável.
Lembro bem do dia em que fui aprovada no doutorado, foi inacreditável pra mim. Passar de primeira num PPG internacionalmente renomado, com nota Capes altíssima e exatamente em 2014, 10 anos após minha entrada na universidade. Bateu aquela vontade de tirar uma foto na beira do rio e colocar ao lado da primeira foto que tirei lá em 2004. Marca de uma vitória. Mostra de que cada dor tinha valido a pena e as mudanças visíveis seriam sinais claros do meu orgulho por ter chegado até ali.
O decorrer não foi fácil, vários empregos, concursos e mais as disciplinas, mas eu segurei firme. 14 disciplinas, boas colocações em concursos, mudei pra um condomínio bem localizado, comprei o carro pelo qual estava apaixonada e uma moto nova pro meu pai. Eu segurava firme as noites em claro, as refeições que não dava tempo de fazer, os prazos... sempre os prazos e os boletos então, esses nunca acabam. Pegava os free lancers da vida. Pra tudo dava um jeito. Mesmo quando fiquei sem salário por meses pela primeira vez em 2014. Respirei fundo e fiz a única que eu sei fazer, procurar mais trabalho pra pagar as contas. Enquanto isso, a tese se distanciava.
Entrei na Uepa e mais um monte de disciplinas e orientandas e bancas (e nada da minha efetivação se resolver). Fui exonerada sem motivos na Semec e passei mais alguns meses sem salário. Na ida ao oftalmo, descobri que estava no nível mais grave do ceratocone em umas das córneas, tive que correr atrás da cirurgia. Como se não bastasse, fui humilhada, privada da minha dignidade por uma das pessoas em quem mais confiava nesse mundo e a outra que eu amava, me culpava ou por ter inventado tudo ou por ter procurado a tragédia. Não dava pra pensar em tese a essa altura.
Fui informada de que deveria comparecer ao PPG pra uma reunião na qual decidiram meu desligamento, não sem antes sofrer os piores ataques como cientista, nunca produziu nada, ninguém sabe como chegou até aqui, é um estorvo pra esse PPG e tantas outras coisas que por alguns segundos sumiam. De cabeça baixa e com muitas lágrimas, me sentia afundar através do chão naquela sala diante de todos aqueles professores que eu admirava, tudo sumia e era como se eu não estivesse ali, mas a realidade me puxava pelo pé e eu voltava pra ser mais e mais rebaixada, aceitando calada várias das mentiras faladas a meu respeito e tão facilmente prováveis, mas não conseguia me defender. Todas as minhas defesas caíram e qualquer um seria capaz de passar por cima de mim sem que eu fosse capaz de qualquer atitude.
Desde aquele dia, eu sobrevivo. Me arrasto pra estabilizar outras pessoas, trabalhando mecanicamente e mantendo a personagem muito bem, confessando só pra mim meu desespero, querendo acreditar que a qualquer momento terei um rompante criativo, como tantas outras vezes antes, e vou escrever, concluir meu trabalho. Tenho minhas raras fugas quando ele aceita me aguentar, mas são fugas, nada muda. Os problemas continuam exatamente iguais. Quando volto pra casa, eles estão me esperando, às vezes piores que antes da minha saída. Cobranças e mais cobranças, boletos e mais boletos, horários e mais horários... e a tese cada vez mais distante.
As férias terminaram, não tenho mais tempo. O prazo dado pro meu religamento está terminando, não tenho mais tempo. Eu estou desmoronando sozinha, à minha volta só cobranças, meu corpo e minha mente não têm resistido ao tempo, mas eu não parei de nadar, continuo movendo meus braços e pernas, mas não consigo mais respirar direito. Vejo os últimos 15 anos passarem como um filme diante de mim e eles estão pesando tanto. A vontade é de deixar as ondas levarem meu sonho, levarem tudo, afogar e acabar com tudo isso de uma vez por todas, não tô mais aguentando.

sábado, julho 27, 2019

Quando a vida imita a literatura

Quando eu era criança, descobri o romantismo, não o romantismo vendido, comercializado no dia dos namorados pela mídia, ou dos príncipes encantados da Disney ou sei lá mais o quê pode ser considerado  romantismo hoje em dia. O que eu descobri foi um movimento artístico incrível, plural, rico e, sobretudo, idealizador. Eu era só uma menina com sonhos imensos e, por vezes, estranhos, completamente encantada pelo ultrarromantismo mórbido, que combinava perfeitamente com a minha paixão pelas roupas e unhas pretas, os cabelos vermelhos, naquela época, incompreendidos, até vistos como aspectos doentios de uma garota estranha e rebelde sem motivo.
Enchia meus cadernos com poemas românticos, minhas pesquisas se direcionavam a isso e por mais que as minhas experiências continuassem a ser negativas em tudo na vida, continuava mantendo o perfil idealizador, acreditando que o mundo é que não me compreendia e que o pessimismo me ajudaria às fugas tão incríveis que os poetas criavam. Mas aí encontrei o Baudelaire, ou ele me encontrou. Li e reli As flores do mal tantas vezes que recitava de cor "Uma carniça", "Serpente que dança", "De profundis clamavi", "Sed non satiata", "O vampiro" então, nossa, como eu amava. Passou a ser um vício.
Comecei a cursar Letras e na primeira disciplina de Literatura, deveria falar de um estilo literário, de cara escolhi o Simbolismo (nunca vou esquecer o comentário do professor ao final da minha apresentação apaixonada: tudo bem, foste muito bem, a apresentação foi excelente, mas Baudelaire não é simbolista ), me aprofundei. Virava noites lendo a respeito, vivendo o Simbolismo. De todo modo, eu não não era mais uma romântica mesmo. Tava quebrada demais pra conseguir idealizar alguma coisa e a universidade ampliou bastante minha visão de mundo pra eu ainda acreditar em relacionamentos amorosos eternos. Eu via a realidade nua e crua e queria senti-la, ouvi-la, tocá-la, experienciá-la de todas as formas que este corpo mortal e frágil pudesse, meu desejo era de transcedência. Essa foi a perspectiva que levei pra vida. 
Com o passar dos anos, me sentia cada vez mais simbolista sem que precisasse de qualquer esforço pra sê-lo. Meu pessimismo não era algo copiado, era autopreservação. E eu continuei afundando numa vidinha comum e sem sentido, dando aulas de literatura, porque literatura era minha vida, sendo humilhada e recebendo migalhas, porque eu não queria me vender, mas os anos não foram bons e o corpo mortal não resistiu, a mente era muito frágil e a depressão me pegou de jeito, só queria morrer. Foram, de fato, os piores dias da minha vida, mas eles me ensinaram como resistir, trouxeram vícios, construíram outra pessoa totalmente diferente em todos os sentidos.. ou era o que eu pensava até poucos dias atrás.
Foi penoso me refazer, demorou bastante e tudo o que eu sabia é que não queria ser nem sombra do que tinha sido. Passei a ser fria e eu, que era expert em mentiras bem armadas, criei a política da verdade. Sempre falando a verdade por pior que fosse. Era melhor sofrer as consequências do que mentir e sofrer as consequências depois. Deixei a literatura amada de lado pra ganhar dinheiro, foquei nos concursos, no doutorado, em ser a melhor em tudo. E eu era. Era o exemplo a ser seguido, a boa filha, a boa professora, a boa aluna e boa não era suficiente, excelente, é, eu era excelente, primeiros lugares, conceitos excelentes, essa era eu, irretocável, e mais, era tudo pra todos, tudo o que precisavam, porque eu era equilibrada, racional, pensava primeiro e agia depois. Na universidade, na igreja, na escola, em casa, todos recorriam a mim porque encontravam a pessoa ajuízada, equilibrada e eu gostava disso, passou a ser meu campo de defesa.
Depois de alguns anos, cansou. Eu cuidava de todo mundo e ninguém cuidava de mim. A excelência começou a pesar, ficou difícil sustentar essa máscara. Os homens vinham atraídos por ela e quando percebiam que era só uma máscara, se cansavam, isso quando não tentavam me controlar, me usar como troféu, esses são os piores, mas ainda consigo lidar com isso. Às vezes chega a incomodar, é verdade, me tira do sério, se eu quisesse ser chamariz desse tipo de homem tava em academia, postando fotos expondo meu corpo, fazendo dieta, eu preferi estudar e ainda assim conseguem transformar isso "dotes" a ser comprados. Abominável.
Passei a me arrastar, a me machucar, a me esconder, nisso eu sou muito boa. Andei sobrevivendo, mas atuo muito bem e o mais incrível é que ninguém desconfia. A minha suspeita é que as pessoas estão tão preocupadas consigo mesmas que não conseguem ver nem o que está à sua frente, quanto mais o que está escondido. Aí essa semana aconteceu.
Eu finalmente me vi diante de mim mesma.
Como eu não percebi antes? Eu simplesmente nunca deixei de ser eu. Claro que com algumas variações, mas também pudera, né? Passei dos 30, não posso mais ser a mesma da adolescência (é, eu era só uma adolescente quando entrei na universidade). Essa máscara de racionalidade pra tentar sustentar o interesse pela antropologia, o falso equilíbrio pra manter os outros, sobretudo minha família e meus amigos estáveis, tudo isso é só mais uma variação daquele ensinamento, tá completamente bêbada, mas senta como uma lady, se precisar levantar, anda devagar e em linha reta, não deixa ninguém perceber pra não passar vergonha. Foi um ensinamento pra vida. Naquele dia, ninguém realmente percebeu que eu já tava em outro mundo, de pernas cruzadas, postura reta, não parecia que eu tava com o corpo dormente, o que não impediu de levar uma queda que deixou rodelas imensas nos meus joelhos quando fui ao banheiro, embora nenhum dos meus colegas tenha percebido pelo caminhar suave e natural no trajeto até lá e, como fui logo embora, ninguém percebeu nada também. Eles não viram a queda e é isso que geralmente acontece. Todos veem a postura, os bons modos, a conversa natural e o caminhar suave, mas sou tão discreta na queda que consegui enganar a mim mesma.
Doeu ver que ainda sou a menina assustada, chorona, que adquiriu um medo gigantesco com o tempo, é verdade, mas continuo sendo a mesma garota frágil, impulsiva, inconsequente e que vive intensamente. Mantenho a pose de mulher amadurecida e responsável, racional e organizada, enganando tão bem a todos que enganei a mim, ou melhor, quis acreditar na mentira que contei a mim vivendo a fantasia porque parecia melhor que a realidade. Quando não tinha mais nada a perder, finalmente tive de aceitar que continuei sonhando e protegendo meus sonhos com tanta força pra que não maculassem o único motivo de vida que me restara. Apesar de me julgar a perdedora, sabia que tudo o que saia pela boca era o extremo oposto daquilo que realmente desejava e permaneceria lutando e repetindo aos outros que desistira, enquanto queimava por dentro. Se por um segundo desconfiassem um impulso, dava uma desculpa, porque lera o bastante, e pareceria a razão de novo. As pessoas são tão fáceis de enganar, tão preocupadas só consigo que não veem nada além do próprio umbigo. Apregoam o tempo todo seus próprios feitos, querem ser ouvidas, vistas, é fácil criar um personagem nessa sociedade, principalmente um que se enquadre nos padrões preestabelecidos. Eu criei minha personagem, eu mantive minha máscara, agora não sei mais como lidar com a ideia de ser quem eu realmente sou, uma romântica incorrigível, simbolista de vanguarda, baudelairiana.     

sexta-feira, julho 26, 2019

Esquecida

Ela passou o dia a me chamar, a me lembrar do gosto incrível do líquido vermelho escuro e semicoagulado que escorre devido ao toque hábil. Prazer indescritível. Gosto, cor, sons, fragrâncias misturados sinestesicamente na melhor sensação da existência: ver a vida escorrer de mim. Não há dor, apenas sonhos se esvaem e descem rolando pela pia do banheiro. Naqueles microminutos mágicos em que tudo some, somos só nós: lâmina, pulso, sangue, gozo. Cada vez mais fundos, cada vez mais hábil e à procura de mais, eu quero mais, preciso de mais. Não posso...
Droga de mundo que não entende as necessidades básicas de um ser humano que precisa de acalento nas horas mais duras. Se não firo ninguém, por que impedir? Se quer firo a mim de modo irreversível, por que me interditar? Não sou o estereótipo de normalidade construído por um padrão tosco de uma sociedade doente. Bem que poderiam esquecer que eu existo, ser só mais uma transeunte indigente imperceptível no meio de tantos outros. Mais uma estranha entre tantos outros nesse mundo onde nascem e morrem tantos todos os dias sem ninguém se dê conta, sem que ninguém lamente o enterro e os presentes se esforcem por resgatar da memória: quem? O que ela fez mesmo?
Por que não? As pessoas valorizam demais a vida, o legado que poderiam deixar pras próximas gerações. E eu que se quer nasci querendo viver, ficaria muito satisfeita em ser imperceptível ao morrer. Ao menos uma vez na vida, esquecida por todos, pra não ter de transmitir o legado da minha miséria. À espera dos vermes roerem, do pó ao pó. Esquecida. 

Kuroi namida



Lágrimas negras
(Anna Tsuchiya)


Por incontáveis noites desejei que o amanhã não chegasse
Perdidos meus sonhos e meu amor,
Assim como a chuva que me acerta, estou chorando...
Para que eu possa viver dessa forma, sem enfeites
O que é necessário?
Sem acreditar nem em mim mesma, em que devo acreditar?
A resposta está tão perto que não posso enxergá-la

Eu, que derramo lágrimas negras,
Não tenho nada e me sinto infinitamente triste
De um modo que não se pode expressar com palavras
Em todo o meu corpo começo a sentir dor
Tanto quanto uma pessoa só não pode suportar

Cansada de chorar na madrugada,
meu rosto já não mais transparece quem sou
Criar sorrisos que escondem minhas fraquezas é algo que vou parar de fazer...
Viver sem se enfeitar, seria neste mundo a coisa mais
Difícil de se fazer?
Se for pra receber algo de você, é melhor que não tenha um formato
Não quero mais nada que possa se quebrar

Mesmo que eu chore derramando lágrimas negras
O amanhã chegará com seu rosto desconhecido
E serei atingida pela mesma dor
Se os dias forem continuar assim
Quero desaparecer ao longe
Mesmo sabendo o quanto isso é egoísta...

Eu, que derramo lágrimas negras,
Não tenho mais nada, e estou infinitamente triste
De um modo que não se pode expressar com palavras
Em todo o meu corpo começo a sentir dor

Mesmo que eu chore derramando lágrimas negras
O amanhã chegará com seu rosto desconhecido
E serei atingida pela mesma dor
Se os dias forem continuar assim
Quero desaparecer ao longe
Mesmo sabendo o quanto isso é egoísta...

quarta-feira, julho 24, 2019

Verdade quixotesca

A verdade é que somos dois Quixotes lançando cálamos em moinhos distintos e que por desígnio incógnito se esbarraram. Não temos Sanchos que nos suportem e não tenho Dulcineia que me inspire. Que triste desventura a nossa. Que trajetória deseroica a minha.

Olhos castanhos


Quando não me vi mais refletida em seus olhos, meu corpo tremeu dos pés a cabeça. Aqueles belos e grandes olhos castanhos se esconderam de mim. Sobre mim, ainda era a mesma barba, os mesmos cachos entre meus dedos, o mesmo cheiro, mas os olhos, aqueles olhos... não refletiam mais nada. O meu corpo era o mesmo, eu era a mesma e tudo que ele provocava era igual. Ele sabia como mover cada parte de mim, ele sabia como se mover em mim, mas não sabia mais o que sentir por mim.