segunda-feira, julho 29, 2019

Fim do sonho

Tá bem difícil aceitar a simples possibilidade de que eu vá morrer na beira depois de ter nadado tanto. Foram anos e anos abrindo mão de desejos, abandonando planos e pessoas pra focar em um único objetivo: o doutorado. Desde o início da graduação, não aceitava conceito que fosse menor que excelente, bons me deixavam decepcionada, regulares eram inexistentes e assim me mantive até o mestrado. Não sem percalços pra me manter, pra manter minha família. 
Muitas noites em claro, sem finais de semana e feriados, o resultado? A excelência nos estudos e uma leve mudança no nível econômico da família, cada vez mais exigente por mais. Me acostumei a não construir relacionamentos com vistas pra um futuro e a intenção de constituir família ou, ao menos, ter a filha tão desejada (pra qual até nome tinha dado desde a adolescência) se desfizeram até serem completamente rejeitadas (não sem muitas críticas). Se há uma pequena vantagem nos tempos que vivemos, apesar de algumas discussões, é a de ser bem mais aceitável a perspectiva de uma mulher focada em sua carreira em vez da vida doméstica. A família e outros intrometidos continuam a cobrar, obviamente, mas continuo com a minha política da boa vizinhança, evitando de todas as formas qualquer tipo de rusga e esse incômodo, apesar de frequente, é bem tolerável.
Lembro bem do dia em que fui aprovada no doutorado, foi inacreditável pra mim. Passar de primeira num PPG internacionalmente renomado, com nota Capes altíssima e exatamente em 2014, 10 anos após minha entrada na universidade. Bateu aquela vontade de tirar uma foto na beira do rio e colocar ao lado da primeira foto que tirei lá em 2004. Marca de uma vitória. Mostra de que cada dor tinha valido a pena e as mudanças visíveis seriam sinais claros do meu orgulho por ter chegado até ali.
O decorrer não foi fácil, vários empregos, concursos e mais as disciplinas, mas eu segurei firme. 14 disciplinas, boas colocações em concursos, mudei pra um condomínio bem localizado, comprei o carro pelo qual estava apaixonada e uma moto nova pro meu pai. Eu segurava firme as noites em claro, as refeições que não dava tempo de fazer, os prazos... sempre os prazos e os boletos então, esses nunca acabam. Pegava os free lancers da vida. Pra tudo dava um jeito. Mesmo quando fiquei sem salário por meses pela primeira vez em 2014. Respirei fundo e fiz a única que eu sei fazer, procurar mais trabalho pra pagar as contas. Enquanto isso, a tese se distanciava.
Entrei na Uepa e mais um monte de disciplinas e orientandas e bancas (e nada da minha efetivação se resolver). Fui exonerada sem motivos na Semec e passei mais alguns meses sem salário. Na ida ao oftalmo, descobri que estava no nível mais grave do ceratocone em umas das córneas, tive que correr atrás da cirurgia. Como se não bastasse, fui humilhada, privada da minha dignidade por uma das pessoas em quem mais confiava nesse mundo e a outra que eu amava, me culpava ou por ter inventado tudo ou por ter procurado a tragédia. Não dava pra pensar em tese a essa altura.
Fui informada de que deveria comparecer ao PPG pra uma reunião na qual decidiram meu desligamento, não sem antes sofrer os piores ataques como cientista, nunca produziu nada, ninguém sabe como chegou até aqui, é um estorvo pra esse PPG e tantas outras coisas que por alguns segundos sumiam. De cabeça baixa e com muitas lágrimas, me sentia afundar através do chão naquela sala diante de todos aqueles professores que eu admirava, tudo sumia e era como se eu não estivesse ali, mas a realidade me puxava pelo pé e eu voltava pra ser mais e mais rebaixada, aceitando calada várias das mentiras faladas a meu respeito e tão facilmente prováveis, mas não conseguia me defender. Todas as minhas defesas caíram e qualquer um seria capaz de passar por cima de mim sem que eu fosse capaz de qualquer atitude.
Desde aquele dia, eu sobrevivo. Me arrasto pra estabilizar outras pessoas, trabalhando mecanicamente e mantendo a personagem muito bem, confessando só pra mim meu desespero, querendo acreditar que a qualquer momento terei um rompante criativo, como tantas outras vezes antes, e vou escrever, concluir meu trabalho. Tenho minhas raras fugas quando ele aceita me aguentar, mas são fugas, nada muda. Os problemas continuam exatamente iguais. Quando volto pra casa, eles estão me esperando, às vezes piores que antes da minha saída. Cobranças e mais cobranças, boletos e mais boletos, horários e mais horários... e a tese cada vez mais distante.
As férias terminaram, não tenho mais tempo. O prazo dado pro meu religamento está terminando, não tenho mais tempo. Eu estou desmoronando sozinha, à minha volta só cobranças, meu corpo e minha mente não têm resistido ao tempo, mas eu não parei de nadar, continuo movendo meus braços e pernas, mas não consigo mais respirar direito. Vejo os últimos 15 anos passarem como um filme diante de mim e eles estão pesando tanto. A vontade é de deixar as ondas levarem meu sonho, levarem tudo, afogar e acabar com tudo isso de uma vez por todas, não tô mais aguentando.

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