sexta-feira, julho 26, 2019

Esquecida

Ela passou o dia a me chamar, a me lembrar do gosto incrível do líquido vermelho escuro e semicoagulado que escorre devido ao toque hábil. Prazer indescritível. Gosto, cor, sons, fragrâncias misturados sinestesicamente na melhor sensação da existência: ver a vida escorrer de mim. Não há dor, apenas sonhos se esvaem e descem rolando pela pia do banheiro. Naqueles microminutos mágicos em que tudo some, somos só nós: lâmina, pulso, sangue, gozo. Cada vez mais fundos, cada vez mais hábil e à procura de mais, eu quero mais, preciso de mais. Não posso...
Droga de mundo que não entende as necessidades básicas de um ser humano que precisa de acalento nas horas mais duras. Se não firo ninguém, por que impedir? Se quer firo a mim de modo irreversível, por que me interditar? Não sou o estereótipo de normalidade construído por um padrão tosco de uma sociedade doente. Bem que poderiam esquecer que eu existo, ser só mais uma transeunte indigente imperceptível no meio de tantos outros. Mais uma estranha entre tantos outros nesse mundo onde nascem e morrem tantos todos os dias sem ninguém se dê conta, sem que ninguém lamente o enterro e os presentes se esforcem por resgatar da memória: quem? O que ela fez mesmo?
Por que não? As pessoas valorizam demais a vida, o legado que poderiam deixar pras próximas gerações. E eu que se quer nasci querendo viver, ficaria muito satisfeita em ser imperceptível ao morrer. Ao menos uma vez na vida, esquecida por todos, pra não ter de transmitir o legado da minha miséria. À espera dos vermes roerem, do pó ao pó. Esquecida. 

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