sábado, julho 27, 2019

Quando a vida imita a literatura

Quando eu era criança, descobri o romantismo, não o romantismo vendido, comercializado no dia dos namorados pela mídia, ou dos príncipes encantados da Disney ou sei lá mais o quê pode ser considerado  romantismo hoje em dia. O que eu descobri foi um movimento artístico incrível, plural, rico e, sobretudo, idealizador. Eu era só uma menina com sonhos imensos e, por vezes, estranhos, completamente encantada pelo ultrarromantismo mórbido, que combinava perfeitamente com a minha paixão pelas roupas e unhas pretas, os cabelos vermelhos, naquela época, incompreendidos, até vistos como aspectos doentios de uma garota estranha e rebelde sem motivo.
Enchia meus cadernos com poemas românticos, minhas pesquisas se direcionavam a isso e por mais que as minhas experiências continuassem a ser negativas em tudo na vida, continuava mantendo o perfil idealizador, acreditando que o mundo é que não me compreendia e que o pessimismo me ajudaria às fugas tão incríveis que os poetas criavam. Mas aí encontrei o Baudelaire, ou ele me encontrou. Li e reli As flores do mal tantas vezes que recitava de cor "Uma carniça", "Serpente que dança", "De profundis clamavi", "Sed non satiata", "O vampiro" então, nossa, como eu amava. Passou a ser um vício.
Comecei a cursar Letras e na primeira disciplina de Literatura, deveria falar de um estilo literário, de cara escolhi o Simbolismo (nunca vou esquecer o comentário do professor ao final da minha apresentação apaixonada: tudo bem, foste muito bem, a apresentação foi excelente, mas Baudelaire não é simbolista ), me aprofundei. Virava noites lendo a respeito, vivendo o Simbolismo. De todo modo, eu não não era mais uma romântica mesmo. Tava quebrada demais pra conseguir idealizar alguma coisa e a universidade ampliou bastante minha visão de mundo pra eu ainda acreditar em relacionamentos amorosos eternos. Eu via a realidade nua e crua e queria senti-la, ouvi-la, tocá-la, experienciá-la de todas as formas que este corpo mortal e frágil pudesse, meu desejo era de transcedência. Essa foi a perspectiva que levei pra vida. 
Com o passar dos anos, me sentia cada vez mais simbolista sem que precisasse de qualquer esforço pra sê-lo. Meu pessimismo não era algo copiado, era autopreservação. E eu continuei afundando numa vidinha comum e sem sentido, dando aulas de literatura, porque literatura era minha vida, sendo humilhada e recebendo migalhas, porque eu não queria me vender, mas os anos não foram bons e o corpo mortal não resistiu, a mente era muito frágil e a depressão me pegou de jeito, só queria morrer. Foram, de fato, os piores dias da minha vida, mas eles me ensinaram como resistir, trouxeram vícios, construíram outra pessoa totalmente diferente em todos os sentidos.. ou era o que eu pensava até poucos dias atrás.
Foi penoso me refazer, demorou bastante e tudo o que eu sabia é que não queria ser nem sombra do que tinha sido. Passei a ser fria e eu, que era expert em mentiras bem armadas, criei a política da verdade. Sempre falando a verdade por pior que fosse. Era melhor sofrer as consequências do que mentir e sofrer as consequências depois. Deixei a literatura amada de lado pra ganhar dinheiro, foquei nos concursos, no doutorado, em ser a melhor em tudo. E eu era. Era o exemplo a ser seguido, a boa filha, a boa professora, a boa aluna e boa não era suficiente, excelente, é, eu era excelente, primeiros lugares, conceitos excelentes, essa era eu, irretocável, e mais, era tudo pra todos, tudo o que precisavam, porque eu era equilibrada, racional, pensava primeiro e agia depois. Na universidade, na igreja, na escola, em casa, todos recorriam a mim porque encontravam a pessoa ajuízada, equilibrada e eu gostava disso, passou a ser meu campo de defesa.
Depois de alguns anos, cansou. Eu cuidava de todo mundo e ninguém cuidava de mim. A excelência começou a pesar, ficou difícil sustentar essa máscara. Os homens vinham atraídos por ela e quando percebiam que era só uma máscara, se cansavam, isso quando não tentavam me controlar, me usar como troféu, esses são os piores, mas ainda consigo lidar com isso. Às vezes chega a incomodar, é verdade, me tira do sério, se eu quisesse ser chamariz desse tipo de homem tava em academia, postando fotos expondo meu corpo, fazendo dieta, eu preferi estudar e ainda assim conseguem transformar isso "dotes" a ser comprados. Abominável.
Passei a me arrastar, a me machucar, a me esconder, nisso eu sou muito boa. Andei sobrevivendo, mas atuo muito bem e o mais incrível é que ninguém desconfia. A minha suspeita é que as pessoas estão tão preocupadas consigo mesmas que não conseguem ver nem o que está à sua frente, quanto mais o que está escondido. Aí essa semana aconteceu.
Eu finalmente me vi diante de mim mesma.
Como eu não percebi antes? Eu simplesmente nunca deixei de ser eu. Claro que com algumas variações, mas também pudera, né? Passei dos 30, não posso mais ser a mesma da adolescência (é, eu era só uma adolescente quando entrei na universidade). Essa máscara de racionalidade pra tentar sustentar o interesse pela antropologia, o falso equilíbrio pra manter os outros, sobretudo minha família e meus amigos estáveis, tudo isso é só mais uma variação daquele ensinamento, tá completamente bêbada, mas senta como uma lady, se precisar levantar, anda devagar e em linha reta, não deixa ninguém perceber pra não passar vergonha. Foi um ensinamento pra vida. Naquele dia, ninguém realmente percebeu que eu já tava em outro mundo, de pernas cruzadas, postura reta, não parecia que eu tava com o corpo dormente, o que não impediu de levar uma queda que deixou rodelas imensas nos meus joelhos quando fui ao banheiro, embora nenhum dos meus colegas tenha percebido pelo caminhar suave e natural no trajeto até lá e, como fui logo embora, ninguém percebeu nada também. Eles não viram a queda e é isso que geralmente acontece. Todos veem a postura, os bons modos, a conversa natural e o caminhar suave, mas sou tão discreta na queda que consegui enganar a mim mesma.
Doeu ver que ainda sou a menina assustada, chorona, que adquiriu um medo gigantesco com o tempo, é verdade, mas continuo sendo a mesma garota frágil, impulsiva, inconsequente e que vive intensamente. Mantenho a pose de mulher amadurecida e responsável, racional e organizada, enganando tão bem a todos que enganei a mim, ou melhor, quis acreditar na mentira que contei a mim vivendo a fantasia porque parecia melhor que a realidade. Quando não tinha mais nada a perder, finalmente tive de aceitar que continuei sonhando e protegendo meus sonhos com tanta força pra que não maculassem o único motivo de vida que me restara. Apesar de me julgar a perdedora, sabia que tudo o que saia pela boca era o extremo oposto daquilo que realmente desejava e permaneceria lutando e repetindo aos outros que desistira, enquanto queimava por dentro. Se por um segundo desconfiassem um impulso, dava uma desculpa, porque lera o bastante, e pareceria a razão de novo. As pessoas são tão fáceis de enganar, tão preocupadas só consigo que não veem nada além do próprio umbigo. Apregoam o tempo todo seus próprios feitos, querem ser ouvidas, vistas, é fácil criar um personagem nessa sociedade, principalmente um que se enquadre nos padrões preestabelecidos. Eu criei minha personagem, eu mantive minha máscara, agora não sei mais como lidar com a ideia de ser quem eu realmente sou, uma romântica incorrigível, simbolista de vanguarda, baudelairiana.     

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